A Portaria nº 1.129/2017, do Ministério do Trabalho, que, entre outras medidas reduz o conceito de trabalho escravo às situações de restrição de liberdade e de escolta armada, esvaziando o conceito quanto às condições degradantes e à jornada exaustiva, foi criticada por diversos profissionais que lutam pela erradicação do problema, entre eles magistrados do Trabalho e pesquisadores.
"Da maneira como ficou regulado, todas as figuras [que qualificam o trabalho escravo, como jornada exaustiva] exigem a restrição de ir e vir e ausência de consentimento. Mas posso ter jornadas do corte de cana, por exemplo, de mais de 12h, extremamente prejudiciais à pessoa, e ainda assim consentidas", afirmou o presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano, à imprensa, ao criticar as mudanças. Além disso, de acordo com o magistrado, a liberação da “lista suja” só sob ordem do ministro do Trabalho "reduz a transparência" e "atenta contra princípio da publicidade próprio da administração pública".
A juíza Luciana Conforti, diretora de Cidadania de Direitos Humanos, também criticou a medida. A magistrada é uma das signatárias de nota pública divulgada na 10ª Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, que começou ontem (16/10) e segue até esta quarta (18/10), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O evento é realizado pelo Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), da UFRJ. A magistrada foi uma das painelistas do evento com o tema "Trabalho Escravo, o resgate de trabalhadores negros e a ausência de Políticas Públicas". A reunião será palco ainda da divulgação do livro “Combate ao trabalho escravo: impacto e significado da sentença Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil”, o qual conta com artigo da magistrada e do presidente da Anamatra. A diretora de Cidadania e Direitos Humanos e a vice-presidente da Anamatra, Noemia Porto, também assinam a "Carta aberta do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania da Faculdade de Direito da UnB", divulgada nesta quarta (18/10).
Sob o título “Nenhum passo atrás contra o trabalho escravo”, a Associação dos Magistrado do Trabalho da 1ª Região (Amatra 1/RJ) também manifestou preocupação com a iniciativa do Ministério do Trabalho. “A definição de trabalho análogo à escravidão é o limite que a sociedade impõe para a exploração humana”, alerta o texto, assinado pela presidente da entidade, Clea Couto.
Confira a íntegra das notas:
Nota pública – Pesquisadores universidades
Nós, dezenas de pesquisadores de universidades de 14 estados brasileiros e duas do exterior, reunidos na X Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, promovida pelo GPTEC, manifestamos nosso extremo repúdio aos termos da Portaria 1.129/17, flagrantemente inconstitucional e ilegal, e nossa grande preocupação com o futuro da política brasileira de combate ao trabalho escravo, construída a duras penas ao longo de décadas.
A pretexto de regulamentar o art. 2-C da Lei 7.998/90, que prevê o pagamento de seguro desemprego aos trabalhadores e trabalhadoras resgatados do trabalho escravo, o ministro do Trabalho do Governo Michel Temer, Ronaldo Nogueira, criou, por ato administrativo, uma serie de regras não previstas na legislação, que se aplicadas de fato, representarão o fim da política de erradicação do trabalho escravo.
A Portaria 1.129, publicada no Diário Oficial da União de 16 de outubro de 2017, por meio de seu art. 1o, concretiza a pretensão dos escravocratas brasileiros, ao reduzir o conceito de trabalho escravo às situações de restrição de liberdade e de escolta armada, esvaziando o conceito quanto às condições degradantes e à jornada exaustiva, o que representa um salvo-conduto para a prática impune do escravagismo moderno.
Como se não bastasse o esvaziamento do conceito, com o fim de inviabilizar a fiscalização das situações de trabalho análogo ao de escravo, a Norma do Ministério do Trabalho ainda estabelece que somente será válido para fins de autuação por trabalho análogo ao de escravo o auto de infração em que constar, obrigatoriamente, os seguintes itens: “a) existência de segurança armada diversa da proteção ao imóvel; b) impedimento de deslocamento do trabalhador; c) servidão por dívida; d) existência de trabalho forçado e involuntário pelo trabalhador. Na prática, essas exigências reduzem a caracterização de trabalho escravo a alguns casos específicos e extremos, em que esses aspectos se acumulam.
Pela Nova Portaria, mesmo que o auditor fiscal consiga ultrapassar as dificuldades criadas pelo Ministério e autuar o empregador escravocrata, ainda assim, não haverá garantia de que a população tomará conhecimento sobre os casos, já que o art. 4º, §1º, determina que o nome do empregador só irá para a Lista Suja, se e somente se, houver determinação expressa do Ministro do Trabalho.
Como garantia de que não mais haverá fiscalização e autuação por trabalho análogo à escravidão, o art. 4º, §3º, I, a Portaria 1.129 ainda determina que o Relatório de Fiscalização só será válido se dele constar Boletim de Ocorrência lavrado por autoridade policial. Essa regra tem o objetivo claro de esvaziar a autoridade do auditor fiscal do trabalho e dificultar a fiscalização do trabalho escravo, condicionando-a à atuação policial.
Esse ataque fulminante à política de combate ao trabalho escravo pelo órgão estatal que deveria preservá-la e fortalece-la surpreendeu e deixou estarrecidos aqueles que há décadas lutam pela erradicação dessa gravíssima violação da dignidade humana. Tudo isso acontece em menos de uma semana de a imprensa nacional noticiar a exoneração do chefe da Divisão de Fiscalização do Trabalho Escravo, para atender interesses da bancada que apoia o Governo no Congresso Nacional.
Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2017.
Carta aberta do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania da Faculdade de Direito da UnB
As pesquisadoras e os pesquisadores do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania da UnB:
1. Reafirmam intransigente defesa e a absoluta necessidade da manutenção do atual conceito de trabalho análogo ao escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, fruto de construção social, avanço político e de compromisso institucional assumido pelo Brasil perante a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, na solução amistosa do Caso José Pereira (nº 11.289), para a proteção da vida, integridade e dignidade dos trabalhadores e não só da liberdade, em sentido estrito;
2. Externam absoluta convicção sobre a inconstitucionalidade da Portaria nº 1129, de 13 de outubro de 2017, do Ministério do Trabalho, que dificulta a fiscalização do trabalho, a divulgação da lista com os nomes dos contratantes que se utilizam da escravização de trabalhadores e que, consequentemente, prejudica o combate ao trabalho análogo à de escravo, representando inadmissível retrocesso na posição de vanguarda que o país vinha ocupando em face de tal prática;
3. A Portaria em questão descaracteriza o tipo penal previsto no art. 149 do Código Penal, sobretudo com relação às condições degradantes de trabalho e à jornada exaustiva, tornando-o completamente vazio de sentido. Para a configuração do crime, o ato administrativo impõe, ainda, a existência de vigilância armada e outras situações não previstas legalmente, em absoluto descompasso com as características do trabalho escravo contemporâneo;
4. Reiteram que no Brasil já existe tipificação adequada para o crime de manter trabalhadores em condições análogas à escravidão, tendo em vista que a maior parte dos resgates realizados pelos Auditores Fiscais do Trabalho ocorre em face de condições degradantes de trabalho (como alojamento em barracos de lona ou palha, expostos a intempéries e a animais; o repouso em condições totalmente inadequadas; o consumo de água em locais onde animais defecam ou guardada em vasilhames de agrotóxicos; o recebimento de comida estragada e insuficiente; o desempenho de atividades sem qualquer proteção à saúde e segurança) e da submissão dos trabalhadores a jornadas exaustivas, com violação dos direitos humanos dos trabalhadores;
5. Repudiam publicamente as justificativas constantes da Portaria do Ministério do Trabalho, já que o art. 149 do Código Penal está em plena harmonia com as Convenções de nº 29 e de nº 105 da OIT, ratificadas pelo Brasil. Os instrumentos internacionais não se referem às formas específicas de trabalho forçado existentes nas diferentes regiões do mundo, apenas abarcam possíveis espécies dessa violação aos direitos humanos, definindo que os Estados-Membros que as ratificarem devem punir o trabalho forçado como crime e assegurar que as sanções impostas pela lei sejam adequadas e rigorosamente aplicadas. Além disso, a legislação nacional deve impor outras sanções, como o confisco dos benefícios derivados do trabalho forçado e de outros ativos;
6. Alertam a sociedade de que o Brasil é citado pela OIT como exemplo para a comunidade internacional, de um país fortemente comprometido com o enfrentamento da escravidão contemporânea, justamente em razão do atual conceito previsto no art. 149 do Código Penal, o que, inclusive, inspirou a alteração dos ordenamentos jurídicos de outros países, como da França, Espanha e Venezuela e de que a alteração, inconstitucional, do conceito representará violação dos instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, além de incontestável retrocesso na proteção de direitos historicamente conquistados;
7. Declaram, finalmente, o firme propósito de caminharem unidos na luta pelo combate ao trabalho análogo ao escravo no Brasil, confiantes no diálogo social e na colaboração entre os diferentes atores que integram a sociedade.
Brasília, 18 de outubro de 2017.
Fonte: Ascom/Anamatra