Em seu poema Volver lá página, o poeta Mauro Benedetti diz: “sin volver esta página, nadie puede ser alguien”. A palavra do poeta nos convida a uma reflexão séria e comprometida sobre algumas dimensões do momento em que vivemos em nosso país. Sendo ainda mais específicas, precisamos virar a página da falta de segurança institucional no Poder Judiciário. Para isso, nada melhor do que dialogar sobre o tema e ampliar o horizonte cognitivo por vieses diferentes.
No último dia 3 de outubro, um procurador federal conseguiu entrar, com uma faca, na sede do Tribunal Regional Federal da 3ª região, na cidade de São Paulo, na famosa Avenida Paulista. O procurador, aparentando surto psicótico, retirado da realidade e desejando o “fim da corrupção”, segundo noticiado pelos veículos de comunicação, conseguiu esfaquear uma juíza federal, convocada para atuação em substituição a um desembargador, que se encontrava em férias. O ataque, felizmente, não logrou retirar a vida da magistrada, mas se constitui em um atentado igualmente grave às expectativas de segurança em ambiente de trabalho, já, habitualmente, sujeito a ser palco de conflitos e divergências, próprios da dialética processual.
Não há Poder Judiciário independente sob ameaça. A fortaleza do Estado Democrático Constitucional de Direito demanda instituições independentes, que proporcionem aos seus agentes o desempenho de suas funções constitucionais sem interferências, sem ameaças, sejam elas veladas, subliminares ou não.
A preocupação com a segurança dos magistrados e magistradas do país encontra-se na pauta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que providenciou pesquisa e publicação do Diagnóstico da Segurança Institucional do Poder Judiciário, 2018, produzido pelo Departamento de Segurança Institucional do Poder Judiciário (DSIPJ/CNJ). O estudo indicou que 110 magistrados(as) estavam, no ano de 2017, sob situação de ameaça, sendo que 97% em razão do exercício da profissão.
Recentemente, foi publicada a resolução 291, de 23/8/19, que consolida as resoluções do conselho nacional de justiça sobre a política e o sistema nacional de segurança do Poder Judiciário e dá outras providências, justamente porque, segundo observa o normativo, “a segurança institucional é a primeira condição para garantir a independência dos órgãos judiciários”. O normativo prevê que os tribunais estaduais possam implementar o Fundo Estadual de Segurança dos Magistrados, mediante projeto de lei, com a finalidade de assegurar recursos para a efetivação, gradativa, das medidas de segurança previstas na resolução 291/19.
A ambiência da intolerância que parece entrelaçar-se ao cotidiano do nosso país, de dimensões continentais e assimetrias flagrantes, demanda providências urgentes, a serem adotadas pelo CNJ, compatíveis com a necessidade de se estabelecer nivelamento padrão de medidas de segurança nos ambientes do Poder Judiciário, a exemplo do que já acontece com o denominado padrão mínimo de qualidade de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC), somente possibilitado em razão da alocação de recursos, no próprio CNJ, com rubrica orçamentária para aquisição de bens e serviços em TIC, ofertados aos órgãos do Poder Judiciário uniformemente, conforme resolução 211/15.
É essencial, portanto, a exemplo do que já acontece na área de Tecnologia de Informação e Comunicação (TIC), a criação de rubrica orçamentária própria no CNJ para implementação, em caráter de urgência, de um padrão básico de medidas de segurança nos ambientes do Poder Judiciário no Brasil. O sucesso na área de TIC, com o evidente incremento dos equipamentos, tecnologia e investimentos no Processo Judicial Eletrônico precisa - mesmo que em natureza de política emergencial - ser replicado no que se refere à implementação de medidas de segurança padronizadas nos fóruns e tribunais, tanto na Avenida Paulista como em pequenas comarcas do interior do país e, principalmente, na seara federal, que não possui Fundo de Segurança de Magistrados.
Não há impedimento para isso1. O protagonismo do CNJ para concretização, em caráter emergencial, de um nivelamento mínimo de segurança nas Unidades do Poder Judiciário, alcançará juízes e juízas, servidores e servidoras que desempenham suas funções nos mais distantes lugares do país, assim como todos aqueles que procuram o Poder Judiciário.
Precisamos virar esta página. E que seja urgente. A Anamatra tem atuado neste objetivo, mantendo-se, sempre, atenta à preservação da atuação independente de seus magistrados e magistradas, finalidade do Estado Constitucional Democrático de Direito. Mas, é essencial que os órgãos de direção do Judiciário observem a urgência dessa agenda da segurança. Não desejamos que ela tome assento na realidade apenas e tão-somente como reação a crimes com resultados ainda mais graves.
Por isso, entendemos que o episódio do TRF3, apenas porque não resultou na morte da magistrada, seja desprezado em sua gravidade e importância. Ao contrário, esse infeliz e repugnante atentado à magistratura – e, assim, ao próprio Estado Democrático de Direito -, deve se constituir em motivação institucional adicional e decisiva para uma tomada de posição do CNJ e dos tribunais na direção da efetiva implementação de uma política de segurança nos órgãos judiciários brasileiros.
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1 Neste sentido, parecer técnico proferido no Procedimento de Competência de Comissão (CNJ) - 0001894-79.2016.2.00.0000, já arquivado.
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*Noemia Porto é doutora em direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), juíza titular da 3ª vara do trabalho de Taguatinga/DF e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)
*Daniela Lustoza é doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), juíza titular da 11ª vara do trabalho de Natal/RN, vice-presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 21ª Região, integrante do Conselho Fiscal da Anamatra e membro da Comissão Anamatra Mulheres.