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01 de outubro de 2020

“Discutir a persistência da desigualdade de gênero é discutir a própria eficácia da Constituição Federal de 1988”

Em evento acadêmico do Uniceub, presidente da Anamatra fala sobre os impactos da Covid-19 no mercado de trabalho feminino.

“Discutir a persistência da desigualdade de gênero é discutir a própria eficácia da Constituição Federal de 1988”. A afirmação foi feita pela presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Garcia Porto, na noite dessa terça (29/9), na 3ª edição do Law Experience, realizado pelos cursos de Direito e Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

Ao falar sobre o tema “Impactos da Covid-19 no mercado de trabalho feminino”, a magistrada explicou que as temáticas relacionadas à igualdade de gênero, ao combate a toda forma de discriminação, à proteção do trabalho como um direito fundamental, ao meio ambiente laboral saudável, à função social da propriedade, entre outras garantias, possuem como marco regulatório a Constituição Federal de 1988.

Nessa linha, a pandemia, com efeitos que transcendem a questão da saúde pública, coloca em evidência o papel regulador do Estado. “A emergência de saúde trouxe à tona a necessidade do afastamento social como forma de prevenção e contenção da doença, o que impactou de forma imediata as relações de trabalho, potencializando os riscos de demissões e de decréscimo na renda. Com esse cenário, o dilema sobre o papel do Estado quando se trata do pacto social e de um desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo surgiu de forma mais latente nos debates públicos”, explicou.

Essa realidade, explicou a magistrada, evidencia a desigualdade de gênero, uma questão não apenas brasileira, mas mundial. Nesse ponto, a presidente mencionou os alertas internacionais que chamaram à atenção para o necessário recorte de gênero para o trato dos temas laborais na pandemia. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em março deste ano, lançou o alerta de que o combate à desigualdade de gênero precisaria fazer parte das respostas que os países estão construindo no campo do trabalho considerando a crise e o pós-pandemia. Na mesma linha, a ONU Mulheres indicou a necessidade de se reconhecer a corresponsabilidade social com os desígnios de uma sociedade mais igualitária, considerando o grau de afetação da pandemia na vida das mulheres.

A presidente da Anamatra também falou de outros problemas relacionados ao gênero que se tornaram mais latentes com a pandemia, como o aumento do número de denúncias de violência doméstica e a perda dos meios de sustento das trabalhadoras informais. “O fato é que a pandemia atinge homens e mulheres de formas diferentes. A pandemia não nivela, neutraliza ou elimina tais circunstâncias. No caso das mulheres, isso ocorre de várias maneiras, incluindo preocupações com a saúde, segurança e renda, responsabilidades adicionais de assistência e maior exposição à violência doméstica, essa, por vezes, resultado de uma convivência forçada que pode exacerbar tensões.”.

Especificamente em relação ao trabalho doméstico, Noemia Porto explicou que as mulheres também foram as mais afetadas na pandemia, em especial as pretas e pardas, maioria nessa atividade, revelando a necessidade da interseccionalidade entre gênero e raça. “Há um impacto desigual nos serviços domésticos, com a situação das trabalhadoras formalizadas, com risco de desemprego, e das diaristas, deixadas sem ocupação, circunstâncias que apontam para situações de insegurança na renda e, como consequência, de insegurança alimentar, justamente atingindo famílias que sofrem com outras vulnerabilidades em razão da pobreza”.

O fechamento de escolas e de creches também impôs encargos adicionais significativos para as mulheres em casa, alertou a presidente. “Essa circunstância atrai reflexões sobre a cidadania feminina, no que diz respeito à divisão sexual de tarefas domésticas, sendo essas últimas socialmente atribuíveis às mulheres, e que, na prática, representam dificuldades, quando não obstáculos, para a inserção e a presença delas no mercado de trabalho”.

Mas, segundo a magistrada, a questão da desigualdade no mercado de trabalho é anterior à pandemia e ilustrada, por exemplo, em aspectos como diferença salarial persistente, índices indicativos de trabalho sem remuneração, presença na informalidade em atividades com qualidade inferior à dos homens, entre outros. “Como há perceptivelmente mais mulheres ocupando diversos postos no mercado de trabalho, isso pode gerar uma compreensão, equivocada, de que essa presença viria acompanhada, na prática, de igualdade de acesso, de permanência e de ascensão profissional, o que, porém, não ocorre”, alertou.

Estatísticas e perspectivas - “O agravamento da situação de desigualdade de gênero é uma realidade que se projetará no futuro”, avalia Noemia Porto. Há indicativos, explicou, de que a perda de empregos decorrente da crise afetará especialmente as mulheres que se concentram no setor de serviços, um dos mais impactados pela crise. “Deve-se considerar, ainda, que muitas mulheres atuam na informalidade e que várias delas sequer terão acesso às atividades que eram até então desenvolvidas, ainda que precariamente, como fonte de sustento”.

Dados do IBGE, relativos ao primeiro trimestre deste ano, ilustram a análise da presidente da Anamatra. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua revelou o aumento da taxa de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos (27,1%), percentual superior à média geral de 12,2% do país no período. Outro dado evidenciado pelo levantamento foi em relação à taxa de desemprego entre as mulheres brasileiras: 4,5% no primeiro trimestre deste ano, 4,1 pontos percentuais acima da taxa observada entre os homens no mesmo período (10,4%). Na mesma linha, a pesquisa mostrou disparidade entre as pessoas que autodeclararam sua cor para o IBGE: a taxa entre os brancos ficou em 9,8%, bem abaixo das pessoas pardas (14%) e pretas (15,2%).

Para Noemia Porto, os dados revelam, ao combinar gênero e raça, a realidade da interseccionalidade e da discriminação. “Importam gênero, raça, origem social, deficiência, diversidade sexual e outros elementos sensíveis que desafiam uma igualdade de oportunidade no mercado de trabalho. As vagas no mercado nunca foram e não são neutras na escolha dos supostos candidatos mais aptos,” criticou.

O combate à desigualdade de gênero passa, na visão da presidente, pela maior participação feminina nos espaços decisórios. As mulheres, apontou, têm sido sobremaneira afetadas pela crise pandêmica, e sem que as medidas, executivas, legislativas ou judiciárias, sejam suficientes para concretizar o princípio da igualdade. Acrescenta-se também a questão da sub-representação feminina nos espaços políticos de tomadas de decisão, no Parlamento, no Poder Executivo, no Poder Judiciário e até nos sindicatos. “Aspectos como como independência econômica, acesso à educação e participação política são fundamentais e interdependentes”, completou.

A igualdade, esclareceu a presidente, não se trata de uma semelhança entre homens e mulheres, mas da aceitação e da valorização das diferenças sem imposições sociais ou culturais. “Essa diferença não pode servir de justificativa para um tratamento jurídico, social, econômico ou político que coloque as mulheres em um patamar de subcidadania ou desvantagem”.

Confira AQUI a íntegra da palestra da presidente.

Autor: Ascom Anamatra