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04 de março de 2021

Bate-papo com a juíza do Trabalho Lisandra Lopes

Março Mulher

Neste mês especial em que as mulheres são chamadas à luta pela igualdade, vamos bater uma papo com algumas de nossas juízas do trabalho sobre o ‘Ser Mulher’. A primeira delas será a titular da primeira Vara do Trabalho de Mossoró, Lisandra Cristina Lopes.

Lisandra é uma mulher forte, que tem se debruçado bastante sobre este assunto. A mãe da pequena Clarice de 8 anos, falou – entre outras coisas –sobre as sensações que estão profundamente entrelaçadas na experiência feminina.

Confira abaixo o nosso bate-papo:

 

 

 

1)O que significa "a dor e a delícia" de ser mulher? 

Na minha vivência, essas duas sensações estão profundamente entrelaçadas na experiência feminina. Há muito tempo, a filósofa Simone de Beauvoir escreveu uma frase que permanece pulsante: “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher”. Como muitas de minha geração, eu comecei a me tornar mulher, ou seja, a ter que me moldar às restrições do mundo feminino, ainda na infância. Foi na interdição, na privação, na proibição que senti a dor: “Não pode jogar bola na rua com meninos. Não pode jogar biloca. Nem pião. Isso é brincadeira de menino. Não corra desse jeito. Sente direito na cadeira.  Não queira companhia de menino, não seja “macheira”. Você já é uma mocinha. Entre. Não saia. Entre. Volte.” 

Na adolescência, a proibição chegou ainda com mais força: “não saia da linha. Não deixe. Não permita. Resista.”

Assim,  a formação como pessoa, a condição de ser mulher foi vivida como uma constante interdição. Essa era a forma usual de proteger meninas e adolescentes. 

Alcançar o status de adulta trouxe uma maior liberdade, mas não livrou de uma restrição que acompanha a mulher ao longo de toda a sua vida, que é o medo da violência, que vai muito além da violência urbana mais comum, como o assalto. É o medo do assédio no transporte público, na rua, o medo da violência sexual. Esses são, portanto, exemplos de dores. 

A delícia advém, até paradoxalmente,  de uma consciência aguda da injustiça, de um olhar mais atento para o mundo, que talvez eu não tivesse adquirido se não tivesse experimentado a dor. Esse olhar traz o desejo de expansão e comunhão. E, claro, há também a delícia de poder ser mãe. Quando a maternidade é escolha consciente, ela dá a oportunidade de vivenciar uma experiência poderosa, primal. 

Em suma, dor e delícia moldam um mundo complexo e intenso. 

 

2)Quais os principais prazeres e as maiores dificuldades para conciliar carreira e família ? 

Essa conciliação se mostra bem mais difícil para as mulheres do que para os homens, e a pandemia de Covid 19 comprovou o que já sabíamos, uma vez que diversos estudos mostraram que a produtividade das mulheres na academia foi reduzida; elas também perderam o emprego com mais frequência, e estão sempre exaustas.  Não é fácil. Historicamente, as mulheres têm desempenhado o papel de cuidadoras e dedicam uma quantidade muito maior de horas ao trabalho doméstico. Mas as mulheres de classe média normalmente tinham à sua disposição as redes de apoio, formadas por creches, escolas, babás e empregadas domésticas.  Sem essa rede, as atribuições recaíram sobre elas, o que revela a face do engodo de um feminismo “parcial”, que se preocupa apenas em alçar a mulher a uma posição semelhante à do homem, sem se ocupar de questões mais abrangentes, que incluam todas as mulheres, e não somente as brancas, de classe média e/ou alta. Quando essa mulher não tem o auxílio profissional de outra mulher (empregada ou babá), seu mundo se complica. E não podemos esquecer a dificuldade de conciliação trabalho/família existente para essa empregada, essa babá. Quem cuida da casa dela, dos filhos dela, enquanto ela trabalha? 

A conciliação só será realmente possível em um novo mundo, no qual o trabalho doméstico e o trabalho de cuidado sejam despidos de seu viés de gênero, e quando os homens de fato encararem tais tarefas em condições de igualdade. 

 

3)             Quais as principais lutas de ser mulher nos dias de hoje?

Creio que uma questão primordial diz respeito ao direito de estar viva e sã! O Brasil sofre com índices alarmantes de feminicídio, que normalmente é o ponto culminante de uma cadeia de violência.  Parece-me que essa é a urgência, esse é o fogo que precisa ser apagado. 

A questão da divisão das tarefas de cuidado e das atividades domésticas é, também, um ponto fundamental para que as mulheres possam de fato se emancipar, ao invés de viverem com múltiplas jornadas, reféns de uma liberdade meramente provisória, em um mundo ainda talhado por critérios masculinos e sexistas. 

Considero, ainda, fundamental pensarmos no futuro das meninas, na execrável sexualização precoce, na necessidade de redução da distância entre mulheres e ciência, mulheres e inteligência artificial, mulheres e participação política, enfim, em maneiras de abrir às mulheres o mesmo mundo de possibilidades que se abre aos homens. 

 

4) A senhora tem se debruçado bastante sobre a questão do gênero. Tendo dito isso, qual a importância de entender seu papel enquanto mulher pela luta pela equidade?

Cada vez mais eu percebo que essa equidade não deve significar uma vitória individual, um empoderamento obtido por força do exercício de um cargo ou posição de poder/sucesso.   Ela deve se estender a todas as mulheres. As teorias críticas, teorias feministas, teorias de gênero, ou seja lá qual for o nome que tiverem, precisam se debruçar sobre as injustiças sofridas por todas as mulheres, em especial as que são mais oprimidas, que no nosso país, segundo nos dizem as estatísticas, são as mulheres negras e periféricas, que se encontram na base da pirâmide social. Meu papel, então, é compreender a interdependência entre meu trabalho e o trabalho da minha empregada doméstica, é lutar por uma solidariedade possível entre homens e mulheres, e a luta por essa solidariedade é, necessariamente, uma luta contra a hiper exploração de quem está na base. 

 

5) Qual a mensagem que a senhora passaria para as mulheres, especialmente nestes tempos difíceis de pandemia?

Cuidem da saúde, descansem, deleguem. Lembrem que vocês são humanas, e não heroínas. Não caiam no mito da mulher maravilha, da mãe perfeita, da mulher ideal. Não existe mulher ideal, e tentar se adequar a essa ilusão é fonte de frustração e cansaço.  

Ao mesmo tempo, estejam atentas e vigilantes: leiam, se informem, reflitam e lutem. O momento atual, no Brasil, é de um imenso retrocesso em todos os níveis. E o esvaziamento dos direitos, a destruição ambiental, a desvalorização da educação, da saúde pública, da ciência, tudo isso redunda em um quadro que alcança de forma muito mais aguda as populações vulneráveis,  de modo que as mulheres são fortemente atingidas. 

Em resumo: Cuidem-se. Valorizem-se.  Lutem.