No dia 18 de maio, o Complexo do Salgueiro foi destino da operação orquestrada pela Polícia Federal com o apoio da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE). O que se iniciou com o objetivo de cumprir dois mandados de busca e apreensão contra facção criminosa terminou com um tiro de fuzil na barriga de João Pedro e pelo menos mais 72 tiros nas paredes e móveis de sua casa1. Naquela tarde, o filho de Rafaela e Neilton estava em casa com outros jovens, entre amigos e primos, fazendo o tempo passar entre brincadeiras. O tempo, contudo, parou.
João Pedro foi atingido e, segundo relatos de familiares, foi levado pelos policiais sob a alegação de que lhe prestarem socorro. No entanto, nas 17 horas que se seguiram, a família não recebeu qualquer informação, palavra de alento ou explicação por parte da polícia. Na terça-feira, dia 19, João Pedro foi encontrado no Instituto Médico Legal. É isto: João Pedro foi atingido dentro de casa; na sequência, foi levado por policiais que supostamente lhe prestariam socorro. Sem nunca terem recebido qualquer notícia, a família finalmente encontrou João Pedro, já sem vida, no Instituto Médico Legal. Ainda em choque, depois da fala comovente de Neilton sobre quem era João Pedro, a tia de João Pedro, Denise Roz, explica ao repórter que lhe entrevista:
“Entendam: lá é uma comunidade, eles falam que é o Complexo do Salgueiro, mas nem todo mundo que mora no Complexo do Salgueiro é bandido.
O meu sobrinho era um menino negro, não é porque ele é negro que ele é bandido. Meu sobrinho não vai passar como bandido pra ninguém, pra corrigir erro de policial nenhum, porque ele não é bandido. [...]. Não aceito isso, eu quero Justiça”.
No artigo de hoje, vou tratar de alguns aspectos trazidos na fala acima, tão forte quanto necessária. Denise busca desassociar localidade e raça de criminalidade. Em seguida, ela se antecipa ao risco de criminalização de João Pedro, jovem negro e periférico, na tentativa de se justificar abusos cometidos por policiais.
A Tia de João Pedro antevê um perigo real: quem não se lembra de Ágatha Felix? Ágatha, menina negra e moradora do Complexo do Alemão, filha de Vanessa e Adeilson, tinha 8 anos e sonhava em ser bailarina, quando também foi atingida por um tiro de fuzil. Ágatha recebeu o tiro dentro de uma kombi, na companhia da sua mãe. De acordo com a versão inicialmente oferecida pela polícia, o tiro que atingiu Ágatha teria sido dado em razão de um confronto, de modo que o policial teria somente reagido. De acordo com as testemunhas presentes no local, não existiu qualquer tiroteio; apenas o disparo do policial.
No caso de Ágatha, foram necessários sessenta dias para que a investigação concluísse pela inexistência do tal tiroteio e de que o disparo não tinha ocorrido como reação policial, e sim como “advertência” dada pela polícia a dois homens que estavam numa motocicleta, de modo a “forçar a parada” após terem furado a blitz2. No caso de João Pedro, também já existem relatos incompatíveis entre si, notadamente os de policiais com os das demais testemunhas e familiares. Segundo os primeiros, a casa de João Pedro teria sido invadida por traficantes, que dispararam e atiraram granadas contra os policiais. De acordo com os familiares da vítima, em nenhum momento a casa teria sido invadida por traficantes; o ataque teria partido de granadas e disparos feitos pelos agentes policiais3.
Neste ponto, gostaria de chamar atenção para o fenômeno da “injustiça testemunhal”, espécie do gênero maior “injustiça epistêmica”. Como explica a epistemóloga Miranda Fricker4, a injustiça testemunhal ocorre quando se questiona, de partida e injustificadamente, a capacidade de um falante de conhecer os fatos e, neste sentido, de poder contribuir a uma reconstrução que mereça credibilidade. Na injustiça testemunhal, o questionamento quanto a tal capacidade deve-se ao pertencimento do falante a determinado grupo social ou étnico, operando-se uma infundada falta de credibilidade quanto ao conteúdo. Portanto, o mesmo conteúdo afirmado teria recepção diversa por parte de seu interlocutor se afirmado por alguém de outro grupo social ou étnico.
Proponho que olhemos para o caso de menina Ágatha novamente, agora pelas lentes da injustiça epistêmica. A versão do tiroteio que nunca existiu perdurou por dois meses e se fez presente em, pelo menos, duas notas oficiais da polícia. Como o mesmo conteúdo de relato seria recebido se saísse das bocas de familiares de uma criança branca e de classe média, acidentalmente morta em outra região da cidade? Será mesmo que os relatos das outras testemunhas incompatíveis com os relatos dos policiais teriam sido de pronto descartados? De acordo com Rodrigo Mondego, advogado da família, “a primeira reação do governo foi dizer que todas as testemunhas estavam mentindo, inclusive a mãe da Ágatha”5.
Ainda não temos respostas quanto ao caso de João Pedro. Não vou me apressar em concluir o que precisamente depende de uma adequada investigação. No entanto, gostaria de marcar posição no sentido de que nenhum relato deve ser previamente valorado em razão de grupo social, étnico ou mesmo profissional a que seu falante pertença.
Fricker identifica a injustiça testemunhal pela descredibilidade préviamotivada por preconceitos, e eu me atrevo a lhe fazer um complemento: também há injustiça testemunhal quando se atribui credibilidade a mais do que a devida, única e exclusivamente, por grupo social, étnico e mesmo profissional a que o falante pertença. No que se refere à palavra dos policiais, não há porque lhe atribuir credibilidade prévia, ao menos não em grau superior à credibilidade devida a qualquer pessoa. Policiais ou não, ninguém está livre de cometer enganos, embaralhar ideias e até mesmo incorrer no erro de mentir.
Isso vale para casos trágicos como os de João Pedro e de Ágatha, mas não só. Não há justificativa epistêmica em se ter a palavra do policial como presumidamente verdadeira para qualquer reconstrução fática (ao contrário do que a Súmula 70 do TJ-RJ determina). Em época de tantos avanços tecnológicos, por que presunções quando existem câmeras e celulares? Por que presumir que o que dizem é verdadeiro quando poderíamos diretamente verificar o que acontece mediante outros instrumentos? Por que não determinar que as operações policiais devem ser documentadas, registradas por aparelhos tecnológicos, do princípio ao fim?
Em definitiva, a atuação democrática do Estado, em qualquer dos seus braços, não pode se esquivar do dever de transparência; seus agentes devem reconhecer que têm contas a prestar à população. A polícia pode e deve trazer informações, e não incógnitas; fatos, e não alegações fáticas; racionalidade, e não arbitrariedade. A determinação dos fatos que preze pela racionalidade deverá superar injustiças epistêmicas, seja de que tipo for.
1 https://extra.globo.com/noticias/rio/casa-onde-joao-pedro-morreu-tem-72-marcas-de-tiros-rv1-1-24437931.html
2 https://oglobo.globo.com/rio/caso-agatha-inquerito-da-policia-civil-aponta-que-pm-causou-morte-da-menina-24088080
3 https://extra.globo.com/noticias/rio/casa-onde-joao-pedro-morreu-tem-72-marcas-de-tiros-rv1-1-24437931.html
4 Fricker, Miranda. “Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing”. New York: Oxford University Press, 2007.
5 http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2019/11/20/bernardo-mello-franco-policia-que-mata-e-mente/
Janaina Matida é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.