Para tratar do trabalho doméstico em sua dissertação de mestrado, a magistrada Lisandra Cristina Lopes, que é Diretora-Secretária e de Comunicação Social da Amatra21, se aprofundou a respeito de temas importantes e bastante atuais.
Num bate-papo com a juíza, entendemos porque o estudo sobre questões de gênero e de raça, eixos estruturantes da matriz da desigualdadesocial no Brasil, embasou seu trabalho.
Já viu que o bate-papo está incrível, né? Então confira na íntegra!
1 - A questão do gênero é bem latente em sua vida. Recentemente fez parte de sua dissertação/mestrado. Qual o motivo da escolha?
Minha dissertação de mestrado foi sobre trabalho doméstico e teve como pano de fundo questões de gênero e raça. Eu vinha sentindo uma grande necessidade de compreender melhor o mundo e suas desigualdades, e para isso percebi que era fundamental ingressar nesses temas. Vou dar um exemplo. É comum vermos matérias de jornal mostrando que, em média, homens ganham mais do que mulheres.
Quando lia sobre o tema, eu sempre me perguntava por que, ao longo de toda a minha carreira, nunca havia me deparado com nenhum processo trabalhista no qual se alegasse discriminação e diferença de salário em razão do gênero. Estariam incorretas as reportagens? Ou é a justiça do trabalho que não é demandada para resolver esses problemas?
Terminei descobrindo que esses casos não chegam à justiça porque os problemas possuem uma base estrutural muito forte, de modo que
eles não encontram uma resposta na CLT. As reportagens e estatísticas não estão se referindo a um homem concreto que, no âmbito de uma empresa, faz o mesmo trabalho que uma mulher e ganha mais. Isso pode ocorrer, mas o problema central não é esse, não é essa discriminação direta. O problema é coletivo e muito mais sutil.
Os homens brancos, devido a uma estrutura que cumula racismo e sexismo, conseguem as melhores oportunidades de trabalho e os melhores salários. Eles são, geralmente, liberados do trabalho doméstico e da maioria das responsabilidades familiares, e assim têm disponibilidade e tempo para se dedicar à carreira. Desde a infância eles são preparados para isso.
As mulheres brancas, por sua vez, em sua maioria conseguem uma empregada doméstica, geralmente negra, que as libera do serviço doméstico e possibilita que elas também tenham uma carreira e ganhem mais do que os homens negros. Sexismo e racismo andam juntos. E a mulher negra fica na base dessa pirâmide, ganhando menos do que todos. Sua principal via de acesso ao mercado de trabalho é por meio do trabalho doméstico.
2-Qual a abordagem da dissertação e o objetivo?
A dissertação se chama “A luta pelo reconhecimento do trabalho doméstico no Brasil: gênero, raça, classe e colonialidade”. Nela, buquei percorrer a trajetória das empregadas domésticas, desde os tempos da escravidão, mostrando como elas sempre lutaram por reconhecimento jurídico e social, inserindo esse percurso na teoria do reconhecimento do filósofo alemão Axel Honneth. A principal pergunta do trabalho é: por que as empregadas domésticas demoraram tanto a alcançar direitos básicos e por que permanecem, até o momento, sem plena igualdade em relação aos demais trabalhadores?
Para responder a essa pergunta eu embarquei na pesquisa sobre questões de gênero e raça. A colonialidade surge quando se vê a manutenção de relações de dominação, com a conivência e o auxílio do próprio direito. O direito do trabalho é um instrumento importantíssimo de luta por um mínimo de justiça social, mas ele ainda é feito por homens e para homens (justamente esse homem branco, livre do trabalho doméstico porque tem uma mulher que faz isso para ele).
Ao longo de muito tempo esse direito não precisou se preocupar com o cuidado com a família e as crianças, pois o operário tinha sua mãe, sua esposa ou uma irmã em casa, para fazer todas as atividades invisíveis que possibilitavam que ele estivesse apto a ir trabalhar, de roupa limpa e alimentado, sem se preocupar com a casa e com os filhos. É tempo de rever isso, de compartilhar responsabilidade e de buscar novas formas de vida, com mais liberdade, mais igualdade e menos opressão.
3-Trazer o assunto para as discussões ajuda a quebrar tabus?
Sim, com certeza. Mas existe ainda uma grande resistência a questões de gênero e raça. É conhecida a relutância de certas mulheres que lutam por igualdade em se reconhecerem como feministas, porque o termo “feminismo” está muito desgastado. Além disso, abordar problemas estruturais é mexer com privilégios arraigados.
4-Desde que começou a trabalhar o assunto, consegue ver mudanças robustas na sociedade?
Percebo um desejo de mudança, mas não ainda a mudança em si, justamente porque isso leva tempo. Quando falamos em sexismo, falamos de um sistema que não está somente em um ou outro indivíduo; está nas instituições, está no cotidiano. Quando falamos em racismo, falamos de uma sociedade que conviveu por mais de três séculos com um regime escravocrata, e que ainda hoje relega para as pessoas negras os piores lugares sociais.
Mesmo quem não é racista, mas é branco, usufrui dos privilégios da branquitude (acesso facilitado aos mais diversos ambientes, a melhores empregos etc.). Como eu falei antes, sexismo e racismo fazem parte de nossa sociedade. E lamentavelmente temos visto um discurso político oficial contrário a todas as conquistas já obtidas. Mas felizmente existem pessoas atentas, nas ruas, nas universidades, e até mesmo no judiciário, tentando manter o que já conquistamos e lutando por igualdade.
Link/Dissertação “A luta pelo reconhecimento do trabalho doméstico no Brasil: gênero, raça, classe e colonialidade” - https://bit.ly/39jpGBF
Autor: ASCOM Amatra21