- A MAGISTRATURA COM TRANSPARÊNCIA -
Nesse primeiro número a Revista Complejus foi ouvir o juiz do trabalho HAMILTON VIEIRA SOBRINHO. Nascido na cidade de Mossoró, Hamilton se destaca entre os jovens juristas potiguares, pelo seu empenho como magistrado e estudioso dos problemas jurídicos contemporâneos. Além de Juiz do Trabalho Substituto, com atuação na 2ª Vara do Trabalho de Mossoró, o nosso entrevistado é Professor da Faculdade de Direito da UERN, onde é referenciado pelo seu estilo sóbrio, diligente, reflexivo e humanista.
Questionador perspicaz, o entrevistado externa as suas percepções sobre a necessidade de aperfeiçoamento do direito do trabalho e da reestruturação do Judiciário Trabalhista.
1. Complejus — Conte um pouco de sua trajetória antes de chegar à magistratura.
Hamilton Vieira Sobrinho — Inicialmente acho importe notar que sou Norteriograndense de Mossoró, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Eu tenho o privilégio de ter observado o funcionamento do Poder Judiciário do trabalho em quase todos os seus ângulos, pois ao sair da faculdade atuei na Justiça do Trabalho como advogado e, posteriormente, como servidor lotado na 2ª Vara do Trabalho de Mossoró. Passei 04 (quatro) anos como servidor, algo que muito me orgulha pelo aprendizado que tive sobre o funcionamento da máquina judiciária e nessa condição, prestei o concurso para Juiz e fui aprovado.
Não posso deixar de pontuar a agradável coincidência de que hoje, como Juiz, atuo de forma preponderante na Vara em que fui servidor, o que facilita o trabalho pelo conhecimento das aptidões do nosso corpo funcional.
2. Complejus: O que despertou o seu interesse pelo Direito do Trabalho?
Hamilton Vieira Sobrinho — Um paradoxo despertou meu interesse. Só se pode qualificar de civilizada uma sociedade que se pauta pelo Direito e, por conseqüência, pelo seu instrumento mais visível que é a Lei (deixo claro que não se pode confundir direito com Lei, algo que não importa discutir agora). Nesse contexto, nós temos uma legislação que consagra uma série de direitos básicos ao trabalhador subordinado, mas que não se aplica a todos os trabalhadores
(pois, hoje, nem todos são subordinados).
Temos uma legislação que interfere no tempo (a exemplo da hora noturna), fixa intervalos, estabelece normas de higiene e segurança e, ao mesmo tempo, convive com o trabalho degradante e infantil. Essa convivência, entre o conjunto dos que cumprem a Lei e o dos que a descumprem, forma o paradoxo a que me referi.
Quero esclarecer que a relação capital-trabalho não pode ser vista de forma maniqueísta, como sendo uma luta entre o bem e o mal, longe disso, embora muitos pensem assim. Na verdade, é uma relação entre os indivíduos que, por sua própria condição humana, são contraditórios e tendentes (todos eles) a supervalorizar os seus próprios interesses. Mas, em sociedade, a lei arbitra os interesses e, em tese, todos deveriam contribuir para a efetivação da lei. Desse modo, me parece paradoxal que tantos, ao mesmo tempo, cumpram e descumpram as leis trabalhistas.
Em verdade o que desejo responder a mim mesmo é se, no campo das relações de trabalho, somos um país civilizado ou não. Essa discussão passa pelos limites da lei, sobre o que a lei deve regular (seu conteúdo), como efetivar a lei e, por fim, se realmente interessa à sociedade debater as condições de trabalho no Brasil. Por agora, não tenho resposta a nenhuma das questões aqui colocadas.
3. Complejus: O que significa a magistratura em sua trajetória de vida e quais foram as suas principais satisfações e decepções como magistrado?
Hamilton Vieira Sobrinho — A principal satisfação que tenho como Magistrado é contribuir, mesmo com minhas imperfeições e inconseqüências, para a evolução das relações sociais no micro universo em que atuo. Para o bem ou para o mal, acredito que a ação de um único indivíduo pode influir na constituição e nos desdobramentos das relações sociais. Se a ação foi boa ou má, o julgamento fica para a história.
A maior decepção que tenho como magistrado é o sentimento de impotência que às vezes sou acometido em algumas situações, pois somos treinados na academia a achar que os juízos jurídicos tem solução para tudo, sendo que esse erro eu não pretendo cometer com meus alunos.
Eis um caso que me foi apresentado e que envolvia uma empregada doméstica. A doméstica trabalhara certo tempo e não recebia o salário mínimo e ao terminar o contrato de trabalho suas verbas rescisórias não foram pagas. A empregadora confirmou o que a doméstica alegava.
Foi perguntado à empregadora a razão desse comportamento, tendo ela respondido que precisava trabalhar para sustentar a si e seu filho e não tinha com quem deixá-lo e mostrou o seu contracheque, sendo que o valor do seu salário não passava do mínimo legal. Pela complexa subjetividade que envolvia a relação, não se chegou a nenhuma conciliação. Como é que se resolve isso? Aqui se tem um caso em que uma parte receberá uma sentença digna de uma moldura, mas que de nada servirá. De um lado, tinha-se uma doméstica que empenhou seu tempo em benefício de alguém e merece ver respeitados os seus direitos e
de outro, tinha-se uma mãe que, sozinha, precisava sustentar e si e sua prole e nas circunstâncias pessoais e geográficas em que ela estava inserida não tinha com quem deixar seus filhos. Quem tem o direito de criticar esses sujeitos? O sentimento de impotência perante essa situação me inquieta, embora para os maniqueístas a solução lhes pareça clara.
4. Complejus: Qual foi a causa mais difícil que você julgou?
Hamilton Vieira Sobrinho — Todas. Cada caso é um caso e ali estão vidas, perspectivas e ansiedades em jogo. Todo julgamento é, em si mesmo, difícil.
5. Complejus: Você poderia dar um exemplo de jurista?
Hamilton Vieira Sobrinho — Na minha visão, jurista é uma palavra meio gasta, pois qualquer pessoa que opine conforme algum interesse visível é qualificado como Jurista. Creio que só merece ser qualificado como Jurista quem conhece o direito de antes e de hoje e tem condições de projetar o Direito de amanhã. Esses deixam as obras imortais. O maior jurista que o Brasil teve foi Pontes de Miranda. Nunca mais teremos um igual, pois o próprio ensino jurídico não contribuiu para a sua formação.
6. Complejus: Tendo você testemunhado diferentes fases do Judiciário nas últimas décadas, quais foram, segundo a sua compreensão, os avanços mais importantes e o que precisa ser prioritário para a Justiça brasileira?
Hamilton Vieira Sobrinho — A nação descobriu o Poder Judiciário após o término da escalada inflacionária que nos assolava. O país percebeu que lides judiciárias não podem ser eternizadas, pois isso interfere diretamente em sua qualidade de vida, pois a ninguém interessa a instabilidade jurídica ocasionada por lides eternas.
O maior avanço que eu observo no Poder Judiciário é a intensificação do debate sobre a transparência nos aspectos gerenciais. Hoje a transparência está na ordem do dia de qualquer órgão público que se pretenda legítimo. Especificamente na Justiça do Trabalho, acho que um grande avanço foi a ampliação da sua competência material, pois de forma lógica e racional, acometeu-se ao mesmo ramo judiciário a atribuição de resolver os dilemas do mundo do trabalho, embora esteja em andamento uma contrarreforma nesse sentido. Ao que me parece, o judiciário não entendeu o desejo do Congresso Nacional.
O que é prioritário para o judiciário é uma mudança cultural. O Judiciário nacional tem que ter uma cultura de resolver os problemas que lhe são apresentados, sendo inaceitáveis lides infindáveis. Se não existir essa cultura, que passa pelo debate sobre a formação do profissional jurídico, do sistema de recrutamento e aperfeiçoamento dos juízes, nenhuma mudança na estrutura burocrática ou nos códigos processuais solucionará o déficit de efetividade das decisões judiciárias.
7. Complejus: A Justiça do Trabalho recebe por ano mais de 2 milhões de novas ações. O que representa esse número? Respeitabilidade da Justiça do Trabalho ou desrespeito crônico aos direitos sociais?
Hamilton Vieira Sobrinho — As duas coisas, pois só acionamos a Justiça se o nosso direito é violado. O que devemos discutir é a razão de nós desrespeitarmos cronicamente os direitos sociais, quem os descumpre e se esse desrespeito interessa a alguém. Quem descumpre os mais elementares direitos trabalhistas? O Poder Público, o grande capital ou as pequenas empresas? Quais os dados que se tem sobre essa questão? Qual a razão das pessoas serem tão permissivas com o descumprimento da legislação trabalhista? A lei torna-se efetiva quando existe um consenso social acerca da necessidade de sua aplicação e da logicidade do seu comando. Assim, quanto mais a sociedade assimila a legislação, mais se criam redes e organismos para garantir sua efetividade.
Veja-se o Código do Consumidor, por exemplo. Trata-se de lei bem mais jovem que a CLT, porém foi totalmente assimilada pela população. Existem associações destinadas exclusivamente à proteção do consumidor, existem os PROCONS que variam conforme o Estado da federação, mas que demonstram grande efetividade e respeitabilidade no implemento da lei. Hoje não existe empresa que não tenha preocupação efetiva em manter uma relação minimamente
cordial com o consumidor. Em relação ao direito do trabalho tem-se o contrário. O que existe na sociedade é uma cumplicidade com a violação da lei trabalhista.
Ademais, existe uma visão deturpada, posta por alguns segmentos da burocracia jurídica, cujo conceito não interessa ser debatido agora, de que tais números tem um lado positivo, ante as possibilidades de trabalho que eles geram ou, ainda, que tal número de ações é o que justifica a existência da Justiça do Trabalho. Isso é loucura.
Pensar dessa forma pode nos levar à conclusão de que seria bom o aumento da criminalidade, pois isso aumentaria o campo de trabalho para os profissionais jurídicos. A burocracia que pensa assim é a mesma que deseja tutelar o trabalhador, é uma “vanguarda do proletariado” às avessas, mantendo-o em condição servil, são tão exploradores do trabalho quanto o pior capital. Ademais, pensar um Judiciário apenas em termos quantitativos é uma deturpação da Justiça.
Ou você é necessário ou não é, independentemente do número de processos que se julga. A suprema Corte dos Estados Unidos julga uma quantidade pouco significativa de processos, se comparada com o STF, o STJ ou o TST, e não me consta que alguém tenha proposto a sua extinção.
8. Complejus: Como você analisa o modelo sindical brasileiro? Acha que ele necessita
ser reformado?
Hamilton Vieira Sobrinho — Para ser diplomático, digamos que ele precisa ser reformado, embora a palavra adequada não fosse essa. A atual estrutura sindical já cumpriu a sua missão e precisa ser alterada com urgência. A classe trabalhadora só mudará a sua condição de vida quando ela agregar-se em torno das entidades sindicais e partir para a busca e ampliação dos seus direitos. Não será uma burocracia jurídica que realizará esse papel.
O que precisa ficar claro é que a disputa sindical é uma forma de disputa política e não se corrige a política com liminares ou sentenças. O Judiciário não pode determinar que todos os dirigentes sindicais sejam combativos, sendo isso um processo que os próprios trabalhadores tem de construir através dos embates concretos.
A construção da identidade dos sindicatos com suas bases só será implementada através dos acertos e dos erros que ocorrerem no processo negocial, e na forma de condução do processo político dentro da categoria. Ou seja, essa identidade será construída pelos próprios trabalhadores e para isso há que se ter liberdade sindical em toda a sua plenitude. Existem aqueles que dizem que os sindicatos não podem negociar isso ou aquilo, pelo fato de serem fracos, de não terem representatividade e, por conta disso, deve-se esperar que se fortaleçam para, só então, permitir a liberdade sindical. Ora, tal argumento é um beco sem saída, parecendo a retrógrada argumentação contrária ao voto do analfabeto (querendo negar a estes a cidadania, algo inaceitável nos dias atuais).
Os sindicatos só se fortalecerão se forem livres, para o melhor e o pior. As correções nos rumos serão feitas pela própria classe trabalhadora, cabendo à lei fornecer as balizas para tais embates. Evidentemente, considerando o volume dos recursos do imposto sindical, não são poucos os que se opõem a tais opiniões. O fundamental é que é inaceitável a existência de milhares de sindicatos sem que eles tenham qualquer representatividade ou qualidade para efetuar a confrontação com o capital. Existem algumas situações que me parecem ilógicas. Veja-se a existência de sindicato de empresas. Sindicato é de empregados, não de empregadores. A estes cabem negociar individualmente ou constituir associações ou consórcios para isso, mas sindicato deve ser só de
empregados. Outras situações são um misto de despreparo ou de má-fé. Certa feita, por delegação do TRT, atuei numa audiência em dissídio coletivo, sendo que uma das cláusulas que mais de morou a ser conciliada foi a referente ao feriado do carnaval. A cláusula que mais se debateu foi um dia que não representa nada. A segurança e medicina do trabalho, algo vital para o trabalhador, não mereceu maior debate. Outro fato que me surgiu, e só demonstra a quantas anda a lisura das negociações coletivas, diz respeito a um ex-dirigente sindical que acionou o seu antigo empregador postulando uma verba que havia sido objeto do acordo coletivo de sua categoria. O autor alegou a invalidade do acordo; invalidade de um acordo que ele mesmo ajudou a negociar. Aqui, aparentemente, se negociou alguma coisa para derrubá-la na Justiça. Isso é imoral.
9. Complejus: Levando em conta que os seus ensinamentos sempre foram muito apreciados entre os seus colegas e alunos, qual conselho você daria ao jovem que pensa em se tornar magistrado do trabalho?
Hamilton Vieira Sobrinho — Para ser Juiz do Trabalho deve-se ter um perfil bem peculiar. Deve-se acreditar no trabalho e em quem trabalha com a consciência de que essa é a única forma de contribuir para o engrandecimento do país.